Como formar bons profissionais? Mantendo a sua sanidade mental
Se a missão das nossas universidades é formar bons profissionais, então esta missão tem necessariamente de passar por garantir as condições óptimas para a saúde mental dos seus alunos.
Sempre quis ser engenheira, desde pequena. Como tantos miúdos, construía coisas, fazia planos e brincava aos cientistas. Por isso, ter estudado no Técnico sempre foi um motivo de orgulho para mim. O Instituto Superior Técnico, que é apelidado como “a nossa faculdade de excelência na engenharia”, que coloca a exigência como bandeira e que se quer a universidade que melhor forma engenheiros. No entanto, não conseguirei nunca desconectar a minha experiência universitária com o stress constante, a ansiedade, a perda de saúde física e mental, e o burnout. Esta é uma realidade para a qual não somos alertados em criança e, infelizmente, é uma realidade demasiado comum aos nossos estudantes.
São vários os estudos em que se verificam em estudantes universitários sintomas depressivos, burnout e até ideação suicida. Num inquérito recente do Conselho Nacional de Saúde, revelou-se que 42,7% dos estudantes universitários portugueses já tiveram experiência de doença mental em algum ponto da sua vida. Segundo um outro estudo elaborado pelo professor João Marôco, do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), mais de metade dos alunos universitários estão em burnout. Há, assim, demasiados alunos (e professores também!) que vêm a sua saúde deteriorar-se enquanto frequentam as universidades, porque lhes é exigido mais do que é humanamente possível, ao ponto de sofrerem burnout ou de pensarem suicidar-se. E, neste contexto, que profissionais estamos a formar?
Os nossos alunos sabem aquilo que estão a passar e exigem melhores condições, como se assistiu com a manifestação de alunos em frente ao Técnico por mais e melhores condições de apoio psicológico. Infelizmente, não estão a ser ouvidos, e são demasiados os exemplos muito concretos e preocupantes da falta de saúde mental no nosso ensino. Apresento assim alguns deles.
A ideação suicida no Ensino Superior
Um dia estava a entrar pela minha antiga escola secundária, em Miraflores, e reparei num amontoado de carros da polícia e de bombeiros nos prédios ao lado da escola. Enquanto passei, pude reparar que estavam munidos com fitas de interdição, máscaras de desinfeção e fatos brancos. Mais tarde, ao falar com colegas e professores sobre o assunto, fiquei a saber que alguém se tinha suicidado. Um suicídio de um estudante universitário do Instituto Superior Técnico. O mais assustador? Enquanto estive na escola secundária, este não foi o primeiro nem o último caso de que tive conhecimento de alunos do IST que escolheram morrer.
Anos mais tarde, entrei nesta faculdade, e um dos primeiros factos que fiquei a saber foi que a entrada para certos andares das torres da faculdade estão interditadas devido à frequência com que alunos se atiravam destas. Este fenómeno é indissociável das instituições de ensino.
Em 2005, foi realizado um estudo por técnicos de ajuda psicológica a estudantes a partir de dados recolhidos junto de um grupo escolar do IST. Este estudo concluiu que “20% dos alunos que recorrem a ajuda já pensou em suicidar-se”. Isto significa que um em cada cinco alunos do IST já pensou em acabar com a sua própria vida – e este número conta apenas com aqueles que procuraram de facto ajuda psicológica, podendo o número ser muito mais alto se contarmos com aqueles que não procuraram ainda ajuda. Claro, não é só em Lisboa que este fenómeno acontece. Segundo a Ordem dos Psicólogos, a prevalência de ideação suicida entre alunos de Medicina da Beira Interior é de 10%. Também no resto da Europa se encontram altas taxas de prevalência deste tipo de pensamentos, como é o caso da Suécia e da Itália, com 13,7% e 14,3%, respetivamente, segundo Friedner et al (2009).
De novo, este é um fenómeno indissociável das instituições de ensino.
Causado exclusivamente por elas? Na maioria dos casos não, mas com toda a certeza as universidades têm a sua quota parte da responsabilidade. Têm a responsabilidade de criar dentro das salas de aula, dos laboratórios, dos horários, um ambiente que seja propício à aprendizagem, e não que crie stress desnecessário, competitividade destrutiva e sintomas de burnout nos seus alunos.
O burnout – o fenómeno pelo qual todos passamos
Além da ideação suicida e do suicídio, também o burnout é um fenómeno demasiado comum. E este, conheço-o de perto.
No Outono de 2019 tive o meu primeiro ataque de ansiedade, enquanto fazia a tese de mestrado numa das melhores faculdades de engenharia da Alemanha. Dei por mim a ser levada de ambulância para o hospital, com sintomas do que para mim só pensava ser um AVC: tinha metade do corpo dormente e não conseguia respirar. Depois de alguns testes rápidos, concluiu-se que estava a sofrer os efeitos de hiperventilação causada por ansiedade. Ou seja, estava tão ansiosa que o meu corpo começou a desligar-se.
Não foi difícil para mim depreender que esta ansiedade era causada pela quantidade de horas que dedicava à minha tese de mestrado, que tornavam impossível a manutenção de uma rotina saudável, que incluísse uma alimentação equilibrada e o tempo para relaxar e para a prática de exercício físico. Não foi difícil para mim depreender que a causa era mesmo a faculdade e os meus estudos.
Depois deste incidente, a saúde mental começou a tomar precedência para mim e comecei a comunicar sobre ela com as várias pessoas à minha volta. A primeira coisa que notei foi o tabu existente à volta deste tema, que leva à vergonha e falta de informação e discussão pública sobre o assunto. Notei que não tinha noção da quantidade de pessoas à minha volta que passaram por situações parecidas, e que nunca falam sobre elas. Estamos todos a passar pelo mesmo, foi a minha conclusão. Não passou muito tempo, até descobrir uma dezena de pessoas próximas de mim que já tinham passado por situações de burnout, muitas mais que sofreram ou ainda sofrem de crises de ansiedade e ataques de pânico, e ainda mais as que sentem que a sua saúde mental está deteriorada devido à experiência que tiveram durante os seus estudos.
Mais uma vez, este é um fenómeno indissociável das instituições de ensino. A exigência, a competitividade, o ambiente de desprezo pelo insucesso e a quantidade desmesurada e desequilibrada de informação com que bombardeamos os nossos alunos está a destruir-lhes a saúde e, em último caso, a prejudicar o seu ensino. E este fenómeno é muito mais frequente do que aparenta. Como referido anteriormente, o inquérito do Conselho Nacional de Saúde mostrou que 42,7% dos estudantes universitários portugueses já tiveram experiências de doença mental. Este foi um inquérito feito a mais de 1000 pessoas, sendo uma amostra já significativa. Ao mesmo tempo, o estudo elaborado pelo professor João Marôco, do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), concluiu também que mais de metade dos alunos universitários está em burnout.
Como é possível dissociar-se o ensino do apoio psicológico quando mais de metade dos nossos estudantes está em graves condições psicológicas causadas pelos estudos?
As soluções
Se a missão de uma faculdade é formar bons profissionais, então essa faculdade tem de pensar o aluno no seu todo e não apenas como máquina de absorver conteúdo e passar a exames. Um aluno mentalmente saudável é um aluno mais capaz de aprender, mais criativo, mais atento e mais persistente, e será por isso um melhor engenheiro. Profissionais que começam a sua carreira em burnout não terão as capacidades e a qualidade que teriam se estivessem saudáveis. E, nestes casos, sofre o profissional e sofre a profissão. Se a missão das faculdades é formar bons profissionais, então esta missão tem necessariamente de passar por garantir as condições óptimas para a saúde mental dos seus alunos. Já foram tomadas algumas medidas para melhorar o acesso dos estudantes aos cuidados de saúde mental da universidade, precisamente no Instituto Superior Técnico, como a contratação de mais um profissional qualificado nesta área. Por outro lado, o Técnico tem também um clube de estudantes sobre Saúde Mental e Inclusão, que organiza, entre outras coisas, sessões de mindfulness e ciclos de partilhas. Estes são os bons exemplos que queremos ver mais frequentemente aplicados e mais geograficamente diversificados.
Tem de haver, assim, uma responsabilização, por parte das próprias instituições de ensino, sobre a saúde mental dos seus alunos.
É preciso que haja um trabalho conjunto entre faculdades, politécnicos e governos para diminuir as desigualdades de acesso a cuidados de saúde mental.
É preciso reforçar as redes de cuidados de saúde mental, tanto a nível nacional como a nível escolar, e garantir que todos os alunos têm igual oportunidade de acesso a estas.
É preciso garantir que a informação e a consciencialização sobre os problemas de saúde mental estão bem espalhadas pelos alunos e professores, para que todos tenham conhecimento dos apoios que têm ao seu dispor nos momentos em que mais precisarem.
É necessário que as instituições de ensino adequem os seus programas de ensino ao que é humanamente possível, entendendo que em muitos casos mais é menos e que um aluno em burnout não é um aluno que vai aprender de forma eficaz.
Devem ser tornados obrigatórios os rastreios de saúde mental regulares e aplicados por profissionais qualificados, em todas as instituições públicas, incluindo universidades, politécnicos e escolas.
Devem ser desenvolvidas e implementadas linhas de apoio psicológico que acompanhem alunos em maior risco de desenvolvimento de patologias mentais.
Por fim, deve ser incentivada e apoiada, em todas as instituições de ensino, a formação de grupos de apoio psicológico, para que alunos, professores e restante staff que passaram por situações de burnout, de ideação de suicídio ou patologias de saúde mental, possam partilhar as suas experiências e, com isso, prestarem auxílio mútuo.
Numa altura em que assistimos a uma rápida degradação da saúde mental geral das populações, ignorar taxas de ideação suicida como as sugeridas pelos estudos apresentados, ignorar a experiência de alunos com episódios de burnout e ansiedade, é condenar centenas de alunos à infelicidade e, em casos extremos, a provocarem a sua própria morte. Precisamos de dar acesso generalizado, diversificado e profissionalizado a cuidados de saúde mental a todos os nossos estudantes universitários e em politécnicos, para garantirmos que teremos um futuro cheio de bons profissionais.