Repensando a democracia: como o sistema eleitoral português ficou… avariado?
Quando a abstenção ameaça voltar a ultrapassar os 50%, torna-se imperativo ter alguém diretamente responsável pela população/cidade/localidade que o elege, ao mesmo tempo que os interesses nacionais de cada cidadão merecem igual respeito.
Pretendo que o caríssimo leitor feche os olhos e imagine que vive num país (eleitoralmente) perfeito. Nesta terra encantada, os deputados eleitos representam, de facto, a região de onde vêm e, na casa da democracia, encontram-se os plurais ideais da população de forma proporcional. Por muito que custe, a mim e a si, não me refiro ao nosso país.
Eu explico. Não precisamos de recuar muito. Viajemos até janeiro de 2022, quando o Partido Socialista de António Costa conquistava uma inesperada maioria absoluta.
Curiosamente, maioria esta de assentos parlamentares (120 lugares, cerca de 52% do total) que não resultou de uma maioria absoluta de votos dos eleitores, obtendo pouco mais de 41%.
Paralelamente, na mesma eleição, como reportou o Expresso, “mais de 671 mil votos foram parar ao lixo”. O exemplo mais flagrante foi o CDS-PP, que ficou sem representação apesar de ter conquistado nas urnas mais votos do que Livre ou PAN. Para além destes mais de meio milhão de votos, muitos outros não são sequer exercidos, não por desinteresse, mas por já se antever que de pouco ou nada servirão em círculos eleitorais onde só se elegem 2 ou 3 partidos. Combater a abstenção tem de incluir reformar o mapa ou o sistema eleitoral para que todos os votos contem, por exemplo através do tão em voga círculo de compensação.
No campo da (falta de) representatividade na Assembleia da República, a imagem não melhora. Segundo uma sondagem do ICS/ISCTE, enquanto 65% dos portugueses confia nas Câmaras Municipais, somente 38% confia no parlamento. De facto, não é preciso muito tempo à conversa com qualquer cidadão para compreender como o conhecimento sobre quem estão a eleger no seu círculo se limita, se tanto, a saber o nome dos cabeça de lista pelos maiores partidos.
Ao contrário do que é muitas vezes afirmado, o problema não está no conhecido método d’Hondt, um simples método estatístico que privilegia a estabilidade política ao reforçar em mandatos o resultado dos partidos vencedores. O problema está no desequilíbrio no sistema eleitoral.
Por todo o mundo, podemos encontrar sistemas eleitorais do mais variado tipo e forma. Todos eles conjugam, distintamente, três pilares: representatividade, proporcionalidade e estabilidade política. Alguns optam por deixar de parte a proporcionalidade, como o Reino Unido, com círculos locais de um deputado (uninominais), permitindo que pouco mais de um terço dos votos se transformem em maiorias absolutas. Outros, como os Países Baixos, abdicam da estabilidade política, obrigando a coligações multi-partidárias, onde, apesar de se regerem por um círculo nacional, os eleitores têm influência sobre a ordem dos candidatos eleitos.
Por fim, temos Portugal, onde se pretende alcançar um equilíbrio saudável entre os três pilares através de círculos regionais com vários deputados (plurinominais) de acordo com a população da região. 50 anos depois, com um governo de maioria absoluta a cair precocemente, os resultados, longe de serem positivos, estão à vista: nem representatividade, nem proporcionalidade, nem estabilidade política.
Mas talvez haja esperança!
Porque não misturar o melhor de vários sistemas? Passaríamos a votar em dois boletins. No primeiro, escolheríamos um representante local através de círculos uninominais, possivelmente a duas voltas, como em França, compensando-se a óbvia falta de proporcionalidade com um segundo voto para um círculo nacional de compensação, como na Alemanha. Se o deputado que melhor me representa, ao nível local, até é do Livre, mas ao nível nacional estou mais inclinado para o social liberalismo do Volt Portugal, como me posso expressar democraticamente? Ou por outras palavras: porque teria de ficar mal representado?
Quando a abstenção ameaça voltar a ultrapassar os 50%, torna-se imperativo ter alguém diretamente responsável pela população/cidade/localidade que o elege, ao mesmo tempo que os interesses nacionais de cada cidadão merecem igual respeito. Ao contrário do que se passa atualmente, independentes já poderiam concorrer e neste momento, por exemplo, Tino de Rans seria deputado desde 2019 através do círculo nacional.
Seria o fim do “voto útil” e dos votos desperdiçados. Aproximaria as pessoas à política e ao parlamento. Fortaleceria a democracia. Forçaria os partidos a entender-se, fazendo concessões e coligações, aumentando a pressão sobre possíveis casos de corrupção e atitudes moralmente dúbias.
Claro está que não há soluções milagrosas e todas elas precisam de ser enquadradas com outras tais que envolvam a participação da população (nomeadamente através das assembleias de cidadãos), mas produziria resultados bastante superiores ao modelo atual que alimenta a abstenção ou aos de medidas eleitorais populistas, como a redução do número de deputados.
Infelizmente, embora haja internamente vozes dissonantes, tanto o Partido Socialista como o Partido Social Democrata continuam a opor-se a tais reformas, com medo de perder poder e deputados. No fim, perde o país, perde a democracia e perde também o PS e o PSD, cada vez mais desacreditados.
Está na hora de repensar a democracia!