Violência de género no espaço digital: quando o silêncio coletivo também fere
Artigo publicado no Jornal Público | 1 maio 2025
A desconstrução da masculinidade tóxica deve ser encarada como uma prioridade educativa e política.

Violência de género no espaço digital: quando o silêncio coletivo também fere
O caso da jovem de 16 anos alegadamente violada em Loures num encontro com três jovens influencers, que gravaram e divulgaram o crime nas redes sociais, chocou o país. O vídeo da agressão foi visualizado mais de 32 mil vezes, sem que nenhuma das pessoas que o viram o denunciasse às autoridades. Este episódio não é isolado, mas sim o reflexo de uma realidade estrutural que cresce sob a aparente neutralidade das tecnologias digitais.
Acresce a ascensão de subculturas digitais misóginas, como a manosfera e os grupos incel ("involuntariamente celibatários"), em que se cultivam ideologias de ódio contra mulheres, reforçando modelos de masculinidade tóxica. Estas comunidades promovem a objetificação do corpo feminino, desvalorizam a autonomia das mulheres e, em casos extremos, glorificam a violência sexual como forma de afirmação de poder. O seu conteúdo prolifera em fóruns e redes sociais, alimentado por algoritmos que privilegiam e apelam ao sensacionalismo e à radicalização.
Os algoritmos que regulam as plataformas digitais amplificam estas narrativas, impulsionados por métricas de cliques e partilhas. Os 32 mil visionamentos do vídeo da violação não são apenas um número: são 32 mil gestos de uma sociedade que, muitas vezes, consome entretenimento que ignora a dignidade humana.
O caso recente do jovem de 19 anos esfaqueado mortalmente em Braga, após ter alertado a segurança de um bar para alegadas adulterações de bebidas com substâncias químicas, é mais um episódio alarmante que expõe a brutalidade com que, por vezes, a coragem cívica é silenciada. A sua intervenção pretendia proteger potenciais vítimas de violência sexual, mas foi recebida com uma retaliação violenta por parte de um grupo. Este caso recorda-nos que a denúncia de comportamentos abusivos não pode ser um ato solitário e perigoso — precisa de ser respaldada por uma cultura de segurança e responsabilidade coletiva. A omissão e a indiferença social perante situações de risco não são neutras: também ferem.
A resposta não pode assentar apenas na responsabilização individual. É necessária uma ação firme ao nível institucional e legislativo. As plataformas digitais devem ser legalmente obrigadas a implementar mecanismos céleres, eficazes de deteção e remoção de conteúdos ilícitos. A Lei dos Serviços Digitais da União Europeia é um passo importante, mas a sua execução prática ainda está aquém do necessário. Não podemos continuar a depender da denúncia dos utilizadores — é essencial que existam sistemas preventivos e penalizações efetivas. Aqui a educação é igualmente um pilar fundamental. A promoção da literacia digital e emocional desde cedo é essencial para formar cidadãos conscientes e empáticos. Não basta saber usar as ferramentas — é preciso saber reconhecer conteúdos que perpetuam a violência, a misoginia e a desinformação.
Mas esta missão não pode recair exclusivamente sobre as raparigas ou sobre quem já é vítima. É urgente investir, de forma intencional e estruturada, na educação dos rapazes. Precisamos de educar os nossos filhos, irmãos, alunos e amigos para o consentimento, o respeito e a igualdade. A desconstrução da masculinidade tóxica deve ser encarada como uma prioridade educativa e política.
Mais do que espectadores, os homens devem ser aliados ativos no combate à violência contra as mulheres. É essencial que se reconheçam como parte da solução — desafiando comportamentos abusivos, confrontando discursos misóginos e recusando a cumplicidade do silêncio. Esta não é uma luta das mulheres contra os homens, mas sim de todos contra a violência e a desumanização.
Esta não é uma luta das mulheres contra os homens, mas sim de todos contra a violência e a desumanização
A escola, os media, as instituições culturais e a sociedade civil têm de atuar como barreiras contra a cultura da impunidade. E essa barreira deve incluir uma reflexão crítica sobre o que significa “ser homem” no século XXI — baseado no respeito, na empatia e na responsabilidade, e não na imposição, no controlo ou na violência.
Importa também perceber que a violência de género não nasce do nada: é alimentada por desigualdades persistentes, estereótipos de género e uma cultura que continua a validar comportamentos abusivos. A transformação cultural é, por isso, um imperativo — não basta punir, é preciso prevenir, educar, transformar.
Neste contexto, a artista Capicua, em entrevista recente, abordou o impacto das redes sociais, referindo-se a elas como uma "montanha-russa tão sinistra e absurda", onde se misturam conteúdos frívolos com tragédias reais. O seu apelo sublinha a urgência de uma reflexão coletiva sobre a responsabilidade social de quem consome, partilha e comenta conteúdos nestas plataformas.
O caso da jovem de Loures e o do jovem de Braga são apelos urgentes à ação. Crimes hediondos foram cometidos — mas também falhámos enquanto sociedade, ao permitir que a dor fosse amplificada, exposta, normalizada. A par da justiça nos tribunais, urge agir nas salas de aula, nas políticas públicas, nas regras que regem as plataformas digitais e, sobretudo, nas escolhas individuais.
O futuro do espaço digital — e com ele, o futuro da democracia — constrói-se hoje. É tempo de proteger as vítimas, responsabilizar os agressores e reafirmar, com coragem e determinação, os valores de dignidade, igualdade e liberdade que sustentam a civilização europeia.
https://www.publico.pt/2025/05/01/opiniao/opiniao/violencia-genero-espaco-digital-silencio-coletivo-tambem-fere-2131559